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AFINAL, A ‘ESQUERDA’ REALMENTE PERDE DE GOLEADA PARA ‘DIREITA’ QUANDO O ASSUNTO É MÍDIA DIGITAL?

*Por Henri Figueiredo

Imagem originalmente publicada em https://www.vittude.com/blog/impactos-redes-sociais-saude-mental/

É muito frequente, desde o golpe de Estado de 2016, lermos em grupos de Facebook, depois Whatsapp, Telegram e, inclusive, em artigos publicados na imprensa (ligada ou não ao mercado financeiro) que “a Esquerda perde de 7 x 1, 10 x 0 ou 22 x 13 da Direita” quando se trata de comunicar e organizar sua militância especialmente nas novas mídias digitais. Será bem assim? Ora, tive uma lição inesquecível na universidade – de um querido professor militante de Esquerda e ex-secretário de Comunicação do PT nos seus grandes anos em Porto Alegre –, lição válida e aferível ainda hoje. Ei-la: se somarmos os profissionais de comunicação social, com foco nos jornalistas, das centrais sindicais combativas e não pelegas, mais a tropa de jornalistas, fotógrafos, designers etc. de sindicatos ligados a essas centrais, mais toda a companheirada que atua na comunicação dos gabinetes de parlamentares, bancadas, partidos políticos do campo democrático popular, movimentos sociais etcetera etcetera, chegaremos a um volume tamanho de gente qualificada pra fazer boa comunicação digital que supera, em muito, o número de profissionais que estão produzindo conteúdo nos veículos ligados ao capital como Grupo Globo, Bandeirantes, Record et alli.

Houve uma máxima que eu passei a combater internamente em campanhas eleitorais, nas quais integrei ou dirigi a Comunicação, que dizia: “Se perdermos a eleição será por causa da comunicação. Se ganharmos a eleição, será apesar da nossa comunicação”. Hoje, ao que parece, a máxima mudou na Era Digital para a analogia futebolística que titula este breve artigo mas a ideia de fundo é a mesma: somos incompetentes, nós os profissionais de comunicação de Esquerda e também a militância ativista em redes, para enfrentar esse monstro, essa quimera assustadora, esse poderio digital da Direita.

Sem a pretensão de redefinir a lei da gravidade – que foi desafiada com méritos por Santos Dumont e outros de sua época –, nem querer reinventar a roda – o que ainda hoje ninguém conseguiu talvez porque deixamos de ensinar geometria com qualidade em todo sistema de ensino –, vou enumerar algumas questões que problematizam (adoro esse neologismo) essa percepção generalizada. Percepção, aliás, da qual discordo não apenas por ser profissional e ativista de comunicação popular no campo democrático e na área digital, mas também porque já vivi batalhas vitoriosas contra partidos, coligações e até mesmo conglomerados de mídia que, não obstante terem os mais modernos meios de produção, recursos financeiros e empregados competentes e inovadores, mesmo assim não foram capazes de vencer nossas ideias, propostas e políticas. Friso: ideias, propostas e políticas – porque sem elas, não há comunicação impressa, verbal, digital, telepática ou psicografada que dê jeito. Vamos aos pontos:

1) A disrupção da hegemonia da comunicação impressa, radiofônica e, principalmente, televisiva em campanhas eleitorais se deu em 2008 quando o candidato do partido Democrata Barack Obama conseguiu arrecadar muito mais dinheiro via Facebook do que pelos métodos tradicionais de até então e de até hoje, diga-se: doações de milionários, jantares vip e ação de lobistas, por exemplo. À diferença da quebra capitalista de 2008, a maior desde a de 1929, os efeitos da crise mundial só chegaram no Brasil a partir de 2013 – e, ainda assim, conseguimos reeleger Dilma em 2014 na maior frente de Esquerda construída desde aquela de 1989 organizada para derrotar Collor. (Brindemos às batalhas que perdemos juntos, escreveu Drexler.) De maneira parecida, o uso das novas mídias digitais – e aí vou focar nas redes sociais – só começou a ser levado a sério a partir da campanha de 2014, tanto pela Esquerda quanto pela Direita. E a Esquerda, naquele ano, contra a mídia comercial hegemônica, contra os movimentos radicalizados das jornadas de junho e julho de 2013 – cuja pauta foi sequestrada e deturpada por grupos fascistas –, contra toda a Direita, o mercado financeiro, o agronegócio e os EUA alinhados com Aécio, ainda assim saiu-se vitoriosa. Ao menos por algumas semanas – mas não vou lembrar do Levy agora, até porque de maneira leviana tem gente que hoje tenta fazer uma falsa equivalênca entre ele o nosso atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Resumo: em 2014, a Esquerda ganhou de goleada da Direita nas redes sociais e mídias digitais e esse foi um fator decisivo para a reeleição de Dilma.

2) A Direita não é burra. A burrice é uma característica intrínseca de parcelas como, num extremo, o bolsonarismo com laivos nazifascistas e, noutro extremo, de setores radicalizados de Esquerda que pregam a revolução comunista e a ditadura do proletariado nos moldes de 1917 sem perceber que tudo no mundo mudou, principalmente o mundo do trabalho que é de onde, teoricamente, deveria nascer, crescer e prosperar esses movimentos junto aos campesinos. Falta só combinar com o MST, por exemplo, que hoje é o maior produtor de arroz orgânico, sem pesticidas, do Brasil e, provavelmente do continente. Pelo fato de a Direita não ser burra, portanto, é que rapidinho ela entendeu o que aconteceu na eleição de Obama e cooptou a principal jovem que desenvolveu o sistema de arrecadação via internet. Mediante bilhões (money talks) levou a garota para suas fileiras, tornando-a vice-presidente da famigerada e extinta Cambridge Analytica, em Londres. No Brasil, de maneira semelhante, a Direita passou a formar, desde a cooptação nos movimentos estudantis de ensino médio e universitário, um grupo para o qual foram pagas viagens, cursos e um “mindset” (programação, lavagem cerebral) liberalóide quando não abertamente neofascista. Poderia listar uma dúzia de deputados e deputadas federais e estaduais (alguns já em terceiro mandato) que são crias desse movimento internacional conservador e extremista que tenta combater o moinho de vento que eles chamam “marxismo cultural” (perdão, Cervantes, por alusão tão pobre de sua principal obra).

3) Militante é militante. Ativista digital é ativista digital. Uma criatura que dizem que existe, parece lenda mas existe, eu já vi, é o militante que também é ativista digital. Tenha-se por “militante” aquele que vai à reunião, que debate presencialmente, que não falta à plenária, que põe o pé na poeira, no barro e na lama para entrar nas quebradas mais pobres e falar com o povo que nada tem. Tenha-se por “ativista digital” aquele que usa todas as suas redes para fazer política, defender seu campo, seus nomes que pleiteiam cargos eletivos, para defender pautas de interesse público e/ou corporativo. São dois espécimes da mesma família cujo cruzamento, em cativeiro ou naturalmente, produziu o militante digital. É raro e, como híbrido, é mais forte, menos propenso a doenças infantis como o esquerdismo. Resiliente pode passar anos a fio tentando convencer tanto os militantes raiz quanto os ativistas digitais nutella que “todos somos um só”, “que todos precisamos trabalhar nas redes e nas ruas”. Eu sinto empatia pelo militante digital. Poderia até dizer que eu mesmo, aos 50 anos, sou uma exemplar ancestral, quase arqueológico, desse espécime.

4) Teve um momento de virada em que a Direita, de fato, assumiu a liderança em ‘fazer política’ via redes sociais. O problema é que, em geral, as práticas eram tão podres quanto historicamente foi o discurso mentiroso dos poderosos para cabalar, ou cabrestear, voto de pobre. Explico: a direita começou a usar as redes sociais abusando de perfis falsos e, do anonimato, espalhando mentiras, notícias falsas (fake news) e assassinando reputações. Foi tão avassalador que um dia ouvi de um prefeito, ex-sindicalista: “Precisamos fazer o mesmo que eles, ou então vamos perder!” A custo o convenci do contrário: não podemos nos rebaixar ao esgoto da política, temos meios de, sem mentir, sem produzir fake news, mobilizar as pessoas tratando do que interessa as pessoas: pão, paz e terra (obrigado, bolcheviques e, depois, e a Teologia da Libertação). Lembro que tratei, em um artigo de 2019, da pauta identitária. Nele cito e volto a citar a Cynara Menezes, nossa querida Socialista Morena, que racionava algo do tipo: a gente, como Esquerda, quer lutar para fazer a sociedade evoluir, avançar, ou vamos, para ganhar eleições, fazer o mesmo jogo vil, baixo, mentiroso e contagioso que está fazendo a sociedade não só se atrasar mas andar para trás? Vejam bem, sendo pragmático e tendo vivido a Realpolitik, é claro que “nós” fizemos também o jogo rasteiro nas redes – entramos na trincheira do inimigo e alguns tomaram gosto. Mas a utopia serve para caminhar, para olhar em frente e seguir, já citava Galeano.

5) O rádio não acabou com o telegrama. A TV não acabou com o rádio nem com o telegrama. O cinema não acabou com a TV. O streaming da Netflix, Globoplay e assemelhados não vai acabar com o cinema. No entanto, contudo, porém, as redes sociais estão acabando com a saúde mental de parcelas cada vez maiores da população mundial – em todas as faixas etárias. É tóxico. Não sou eu que digo. Já que vocês estão com o celular na mão, ou em frente a um black mirror, deem um Google “redes sociais, saúde mental, ciências, pesquisas”.

6) É preciso regular, no mundo inteiro, o uso das redes sociais e das mídias digitais. Assim como nos EUA e em vários países europeus, o Brasil também já está trabalhando nisso. O deputado federal Orlando Silva (PCdoB) é o relator do nosso projeto. Lembrando que o Brasil aprovou um belíssimo “Marco Legal da Internet”, à época relatado pelo então deputado federal Alessandro Molon. Virou letra morta. Nosso trabalho militante hoje é fazer com que a lei relatada por Orlando Silva seja aprovada e “pegue”.

7) Assim como existe uma vasta rede subterrânea (isso é uma metáfora, ok?) de haters (odiosos odiadores), que se espalhou para a juventude dos games (aficciondos em jogos on-line) e tem criado células autodenomidas “red pill” (uma distorção criminosa de uma ideia genial das irmãs Warchoski no primeiro “Matrix) de onde estão saindo sociopatas assassinos de crianças em escolas, misóginos e teóricos da conspiração ultradireitistas, existe também uma grande rede de influenciadores humanistas, antirracistas, feministas, pela liberdade religiosa, pela livre orientação sexual. Aliás, falando nisso, talvez o melhor nome para definir a sociopatia do jovem (ou nem tão jovem) que passa o dia on-line falando mal de mulher, da Esquerda e de tudo que ele tem medo, não conhece ou não entende é INCEL, os celibatários involuntários, na sigla em inglês. Aí eu penso como, de fato!, Wilhelm Reich, o psiquiatra austríaco que foi, com Jung, um dos principais orientandos de Freud, tinha razão ao conceituar a “peste emocional” da qual está acometida toda sociedade moralista, que vive guerreando (inclusive dentro de casa) e sufocando sua atração sexual, sua pulsão vital, trocando-as por crença religiosa, vibrando sua baixo auto-estima, sofrendo e reagindo pela sua incapacidade de ouvir nãos, ou por negação do próprio desejo. Meninos mimados não podem reger a nação, disse Criolo – numa referência a 01, 02 e 03. Meninos doentes não podem amedrontar a nação. A rede é tóxica e, todavia, reflete uma sociedade adoecida que precisa de cura. Como? Reich e Paulo Freire teriam, sem dúvida, as respostas. Aliás, eles se foram, mas alguma das respostas estão em suas obras.

Afinal, a Esquerda perde de goleada para Direita nas redes sociais? Esse foi o mote, o gancho, a faísca que me fez sentar aqui e escrever no fluxo da consciência. Acho que não respondi. Só criei mais dúvidas e fiz digressões correlatas mas, quero crer, importantes para o contexto. Dou-me conta: trata-se de uma falsa premissa. Se mergulharmos por alguns segundos, e de olhos bem abertos, nos conceitos com os quais trabalhamos, talvez enxerguemos que o conjunto da sociedade está “perdendo de 10 x 0” para redes sociais. Encerro por aqui tais elucubrações porque provavelmente o busílis da questão não esteja mais na disputa democrática de ideias, conceitos, interesses; talvez a chave esteja na saúde mental. Agora me deem licença que vou bater um papo com a minha Inteligência Artificial – preciso fazê-la aprender algumas expressões idiomáticas e não responder ao pé da letra, como nos ensinou o cineasta e roteirista Jorge Furtado ao perguntar pra sua IA: “Em caminho de paca, tatu caminha dentro?” A resposta da IA: “Não é comum que os tatus caminhem dentro de caminhos de pacas, já que esses animais geralmente têm hábitos noturnos e solitários, e não costumam compartilhar tocas ou buracos com outras espécies”.

*Henri Figueiredo é jornalista e, nos últimos anos, perdeu a paciência para revisar seus próprios textos. Militante filiado ao PT, é ativista digital e tem a HMF, que faz consultoria em mídia e cultura.


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