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Arquivo mensal: janeiro 2024

A ideia platônica da música boa

*Por Henri Figueiredo

A música brasileira já foi considerada a “melhor do mundo”? Sim, se considerarmos principalmente o público brasileiro, nossos artistas e alguns parceiros musicais estrangeiros de nossos compositores e intérpretes. Também, é claro, por um público seleto ao redor do planeta. Da mesma maneira, é considerada “a melhor do mundo” a música feita nos Estados Unidos da América, com sua estupenda audiência e imposição global do império fonográfico; “a melhor do mundo” também é a música feita na Índia, fundamental até hoje em qualquer filme rodado no país que mais produz cinema todo ano; ou a música ancestral de todos os recantos da África; “a melhor do mundo” é a música ritual dos povos originários das Américas, da Oceania e da Ásia insular; para muitos, a melhor é a música rítmica do islamismo sufi que faz os dançarinos girarem até cair em êxtase espiritual. Nietzsche disse algo como: “Só acredito num Deus que saiba dançar”, que, aliás, deu nome a um excelente livro do escritor e terapeuta gaúcho Sérgio Veleda – amante e estudioso da música e de tantas outras artes.

Muitos cientistas defendem que todos nascemos com ouvido absoluto – a capacidade de perceber e identificar cada nota, vinda de uma lira ou do ronco de uma moto. Algo que se perde, de acordo com os que defendem a tese, se não treinarmos tal capacidade desde a primeira infância. Eu tive a sorte de ter, em escola pública estadual no início dos anos 80, no Rio Grande do Sul, aula de música curricular: escolhi o violão. Antes, tinha tentado, em casa, a flauta doce e o clarinete. Até hoje volto ao violão com amor, respeito e dificuldade, lendo cifras e não notas musicais. Me encontrei melhor nos instrumentos percussivos e uma batucada de roda, uma boa bateria de bloco ou de escola de samba me enleva e me conduz a lugares indizíveis de prazer e de dissolução do ego: trato como uma experiência sensorial e emocional valorosa nessa vida.

Por ter voltado ao violão, baixei um aplicativo de cifras no celular. No segundo dia do ano, este app me notificou com uma lista das 10 cifras mais buscadas em 2023. Seis eram de música gospel, três de sertanejo (incluindo aí “Evidências” que, apesar de ser o maior hit de Chitãozinho e Xororó, é uma canção romântica composta por José Augusto) e, em sétimo lugar – entre as dez – o único ponto fora da curva: “Tempo Perdido”, da Legião Urbana – nome de banda que também batizaria lindamente qualquer grupo de Resistência às imposições do chamado Deus Mercado.

Aqui chegamos ao ponto crucial deste meu breve comentário que, friso, não vem com a pretensão nem com a metodologia necessária de ser uma tese. Menos, bem menos. No entanto, verifico há tempos o que muitos antes de mim também já verificaram: o elitismo cultural que desqualifica o gosto das massas e mede o bom, o belo e o justo pelos seus parâmetros de cidadãos e cidadãs ilustrados.

O próprio Carlinhos Lyra percebera, lá nos anos 60, que a Bossa Nova, cria do samba, renegava suas raízes no morro, nas favelas e nos guetos da música negra, da Bahia e do Rio, e sob a “influência do jazz” bebia em córregos gelados do Hemisfério Norte. Concordando com Lyra, Paulinho da Viola disse que até aceitava o argumento dos papas da Bossa Nova mas, com toda a sabedoria de quem parece que já nasceu ancião, lembrou que a rapaziada sentia a falta de um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim. Décadas antes, Noel Rosa brincava que o “cinema falado era o grande culpado da transformação”. E eu entendo que ele não se referia apenas às expressões idiomáticas mas também aos ritmos que nos chegavam de terras estrangeiras.

Em outubro de 2021, Caetano Veloso, verdadeira antena da aldeia, chamou o virtuose da percussão Pretinho da Serrinha para uma canção chamada “Sem samba não dá”. Nela diz que tudo está “esquisito, muito errado, mas a gente chega lá”. E derrama, em seguida, toda sua generosidade em relação à plêiade de novos artistas que surgem na onda do streaming, das redes sociais, na criação em laboratório de subgêneros feitos sob medida para arrebatar massas por um ou dois anos e, depois, sumirem. “Tem muito atrito, treta, tem muamba | Mas tem sertanejo, trap, pagodão | Anavitória, doce beijo d’onça | Mar(av)ília Mendonça, afinação” (…) Tem Ferrugem, Glória Groove, Maiara e Maraísa | Yoùn, Yoùn | Tem Djonga com Rogério | MC Cabelinho, tem Baco Exu do Blues (…) Tem Duda Beat, Gabriel do Borel, Hiran e Majur | Tz da Coronel | Tem Simone e Simaria sambando | Tem Leo Santana e a Mendonça | No Pelourinho com a Didá”. Só que sem samba não dá, conclui Caetano.

Em “Anjos Tronchos”, Caetano critica os donos das novas tecnologias vindas do Vale do Silício que incidem de forma muitas vezes perniciosa em vários aspectos da vida, inclusive na música. Contudo, ele finaliza a canção com versos que traduzem também o meu sentimento em relação ao estado das coisas na música contemporânea: “E enquanto nós nos perguntamos do início | Miss Eilish faz tudo do quarto com o irmão”. E que grandes artistas são a jovem Billie Eilish e seu irmão Finneas. Antes, Caetano, demarca: “Anjos já mi ou bi ou trilionários | Comandam só seus mi, bi, trilhões | E nós, quando não somos otários | Ouvimos Shoenberg, Webern, Cage, canções…”.

Fui ver a lista das músicas mais tocadas nos EUA de acordo com a revista Billboard, da Prometheus Global Media – especializada em informações sobre a indústria musical. 1) Brenda Lee, “Rockin’ Around the Christmas Tree” 2) Jack Harlow, “Lovin on Me” 3) Taylor Swift, “Is It Over Now? (Taylor’s Version) [From the Vault]” 4) Taylor Swift, “Cruel Summer” 5) Drake feat. J. Cole, “First Person Shooter” 6) Drake “Smile you out” feat. SZA 7) Doja Cat, “Paint the Town Red” 8) Zach Bryan “I remember everything” 9) Oliver Anthony “Rich men north of Richmond” 10) Jason Aldean “Try that in a small town”. E adivinhem só, para quem não conhece, a maioria é de “sertanejo americano” (ou country songs, perdoem-me os puristas), rap e a Taylor Swift – que depois dos megashows no Brasil no fim ano de 23, acredito que dispensa tanto apresentações quanto vilipêndios.

Não satisfeito (“I can’t get no!”), fui buscar a lista das dez mais tocadas no mundo, também de acordo com a Billboard. A reportagem começa assim: “Balada emo teatral. K-pop brincalhão. Camponeses de protesto irritados. Dueto sentimental sertanejo. Hip-hop e B lento com melaço. Rap pop viral. Músicas de quatro anos atrás, sete anos atrás, 65 anos atrás”. Claro que, neste ponto, falam de “Now and Then” dos Beatles.

Ah, eu tinha esquecido completamente do K-pop. Assim como qualquer brasileiro no mundo é abordado de maneira simpática para falar sobre futebol, quando a gente encontra um sul-coreano no Rio de Janeiro (nem todos falam inglês, mas hoje tem o modo intérprete do Google que resolve qualquer dificuldade de conversação) basta falar “K-pop” ou “K-music” para você imediatamente fazer um amigo feliz em saber que algo de sua cultura corre por terras brasilis – além do taekwondo, da Samsung, da LG e da Hyundai. Detalhe, podem ser adultos, falou em “K-pop” os sérios e desconfiados coreanos abrem um sorrisão e ficam de boas.

Eu vou finalizar essa reflexão com o trecho que postei, e citei acima, sobre as 10 cifras mais buscadas porque eu acredito, de fato, esta é uma lista muito mais, digamos, orgânica e representativa do gosto popular do que as listas das mais ouvidas/vendidas. Quando alguém vai atrás de sua canção preferida para aprender a tocá-la (como é bom tocar um instrumento, para lembrar mais uma vez Caetano) é que o negócio foi além do mero entretenimento e virou sentimento. Aqui, na minha irrelevante opinião lida pelos meus 7 leitores (se tanto), é que mora o perigo. Lá vai:

HAJA TAMPÃO DE OUVIDO! [ou A PASSOS LARGOS PARA UMA TEOCRACIA VIA HEGEMONIA CULTURAL] Esta lista, neste 2 de janeiro de 24, é a das 10 músicas mais buscadas para se tocar com cifra. Tomando como referência a minha própria experiência, toda vez que busquei cifra foi porque eu AMAVA determinada música. Por outro lado, faz tempo que deixei daquele mimimi do elitismo cultural que desqualifica o gosto popular. Contudo, todavia, porém, é chocante o Top Ten das mais buscadas num dos principais sites de cifras do Brasil – é o retrato de como o neopentecostalismo vai ganhando a guerra da hegemonia cultural. Não, eles não leram Antonio Gramsci (muito menos a Bíblia, que é acessório de suvaco) mas seus mais altos líderes leram e entenderam, muito melhor que maioria de nós. Para mudar uma sociedade ou, em outras palavras, fazer uma revolução é preciso, antes, estabelecer-se como hegemonia cultural. O que salva, ainda, é a Resistência, nesta lista verificada como Legião Urbana: “Tempo perdido”. O Renato Russo foi um baita profeta. Eu posso até ser tolerante com o gosto musical da massa ignara, como diria Gaspari. O que não aturo é gente que detesta Legião e fica comparando com outras bandas gringas que: 1) São piores instrumentistas; 2) Nem de longe têm ou tiveram um letrista/poeta como Russo no grupo. 3) Não alcançam o significado de divisor de águas que muitos artistas/grupos musicais nacionais exerceram na história da nossa grande música brasileira. Daí eu fico tão irritado a ponto de achar que o despencar da qualidade da música produzida no Brasil para as massas não foi apenas a facilitação do acesso e o barateamento do streaming, além da já calcificada exploração d@s músic@s profissionais. Foi também essa viralatice de pagar pau pra banda gringa que nem tem mais público pra lotar teatro no resto do mundo mas lota estádio no Brasil. Além, é claro, do projeto teocrático-fundamentalista-assassino que vai ganhando adeptos dispostos a matar e morrer por divindades, ídolos ou mitos.” [Postado no meu perfil de Fakebook em 2 de janeiro de 2024).

Quase ia esquecendo de como comecei. Platão teorizou muito sobre música. Atribuem a ele frases como “cuidado com o que o ‘governo’ faz você ouvir, música é frequência. O que você ouve determina a frequência em que você vibra”. Não há registro exato disso, mas a ideia faz sentido, como escreveu Paulo Costa e Silva, professor de Estética no Departamento de História e Teoria da Arte da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em artigo na revista Piauí (cujo link está no final deste texto). Diz Paulo, no artigo “Platão e poder da música”.

– Deve-se ter em mente que, para Platão, o mecanismo psicológico da empatia descarta o filtro da razão. Ao se dirigir à parte sensível e irracional da alma, à sensibilidade e à afetividade, a imitação de tipos extremados alimenta no espectador sentimentos ruins, quando, nos termos do filósofo, o melhor seria deixá-los “secar”. (…)

– Mas nem tudo em Platão é censura e proibição. Como a arte deve ter um papel ativo na construção da pólis ideal, certos modelos são altamente recomendáveis. No próprio texto da República, ele aconselha a educação dos corpos pela ginástica e também pela musiké. Por essa palavra os gregos designavam uma combinação de poesia, música e dança. Na Antiguidade, a música possuía uma função catártica, de purificação. Colocava o corpo em equilíbrio, harmonizando-o com a ordem cósmica, preparando-o para a aparição do divino. Possuía também uma função mimética e indutora: se a poesia imitava os homens em ação, a música imitaria os estados de alma, suas emoções e virtudes. A cada modo musical atribuía-se um éthos, um caráter específico que o ouvinte associava de imediato a um significado psíquico, que poderia infundir ânimo e potencializar virtudes do corpo e do espírito. [A íntegra aqui: https://piaui.folha.uol.com.br/platao-e-o-poder-da-musica/ ]

Me despeço com as duas últimas estrofes de “Que tal um samba” de Chico Buarque e Hamilton de Holanda, escolhida a Melhor Canção de 2022 no Prêmio da Música Brasileira, entregue no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Que tal uma beleza pura

No fim da borrasca?

Já depois de criar casca

E perder a ternura

Depois de muita bola fora da meta

De novo com a coluna ereta, que tal?

Juntar os cacos, ir à luta

Manter o rumo e a cadência

Esconjurar a ignorância, que tal?

Desmantelar a força bruta

Então que tal puxar um samba

Puxar um samba legal

Puxar um samba porreta

Depois de tanta mutreta

Depois de tanta cascata

Depois de tanta derrota

Depois de tanta demência

E de uma dor filha da puta, que tal?

Puxar um samba

Que tal um samba?

Um samba

*Repórter, produtor de espetáculos, roteirista e batuqueiro amador.