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Arquivo mensal: julho 2016

“Preconceito contra as diferenças ameaça família de permacultores”, por Henri Figueiredo*

Lá pelas três da tarde, num azul limpo, o avião riscou o céu de Lomba Grande numa trajetória de norte a sudoeste inscrevendo um rastro de nuvens a mais de 10 quilômetros de altitude. O sol já começava a declinar (o domingo foi a véspera do solstício de inverno) mas, lá no alto, o jato era um ponto brilhante que cintilava entre a prata e o dourado. “Por que o avião faz nuvens?, Antje perguntou. Respondi que o vapor das turbinas se transformava imediatamente em cristais de gelo porque o avião viajava a temperaturas muito negativas lá em cima. Foi a única coisa que devo ter ensinado à menina de 9 anos naquela visita. Aprendi muito mais com ela, com os três irmãos menores e com seus pais, permacultores. Vivem num pequeno lote de 2 hectares cedido para a família em comodato e de onde eles tiram o sustento. Muito conhecidos e queridos na comunidade, cultivam a terra e vendem a produção em duas feiras na cidade de Novo Hamburgo, onde fica o distrito agrícola de Lomba Grande, e na vizinha São Leopoldo.

Manuel Rinze Kuhls, 42 anos, o pai, é alemão e já vive há 21 anos no Brasil – a metade da existência e quase toda a vida adulta no país deu a Manuel um vasto vocabulário em português e sua fala é acelerada como seu raciocínio. Daquele Manuel que eu conheci em 2002, apresentado por amigos em comum, além da língua ferina e do humor ácido, ele manteve um carregado sotaque alemão. “Mas muitos amigos dizem que eu sou mais brasileiro do que muito brasileiro”, rebate com inequívoco orgulho e um sorriso divertido para, em seguida, explicar que às vezes lhe é difícil encontrar o termo correto em português. “Até hoje leio muito em alemão, nossos filhos veem desenhos animados em alemão que amigos nos enviam da Alemanha, a gente conversa em alemão em casa. A língua portuguesa, ao contrário da alemã, não tem termos exatos para tudo. Em português a mesma palavra ou expressão pode significar coisas completamente diferentes só mudando a entonação – isso é bem latino”, diverte-se Manuel. E para deixar clara sua opinião, poucas vezes me respondeu com uma frase objetiva. Uma resposta bem dada, para Manuel, precisa de uma contextualização e de uma detalhada explicação para que, ao interlocutor, não restem dúvidas do que ele quer dizer.

E assim, muitas vezes, eu cumpri o papel um tanto quanto chato de interromper a narrativa para reconduzir a conversa de volta ao ponto inicial – por que, afinal, Manuel, sua companheira Rosilene Rosa de Melo (Rosi), 37 anos, as filhas Antje, 9, Nina, 7; e os filhos Lutz, 4 anos, e Wolfgang, de apenas 9 meses, estão ameaçados de despejo do lote de terra que cultivam no distrito agrícola de Lomba Grande?

 

LEI ANACRÔNICA versus FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA

O direito do acesso e da permanência na terra é um direito da categoria de respeito à dignidade humana. No arcabouço legal, no marco da Constituição Federal de 1988, também temos a descrição da função social da propriedade rural. No artigo 185, determinou-se ser insuscetível de desapropriação a terra produtiva. Por outro lado, Manuel e sua família usufruem do pequeno lote que cultivam e onde vivem como comodatários, desde 2013, num contrato com previsão de extinção apenas em 2023. O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Coisas fungíveis são bens que podem ser substituídos por outro da mesma espécie, qualidade ou quantidade, como dinheiro ou mercadorias. Portanto, o comodato é um empréstimo de algo que não pode ser substituído por outro da mesma espécie e qualidade. Um detalhe importante: não pode o comodante, ou seja, o dono da terra que a cedeu em comodato a Manuel, salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso da terra, antes de findo o prazo convencional. Qual teria sido, então, a “necessidade imprevista e urgente”, que levou o proprietário da terra a entrar, em dezembro de 2015, com ação judicial de imediata rescisão de contrato de comodato ameaçando, dessa maneira, não só desalojar mas retirar o meio de vida da Manuel, de sua companheira Rosi e dos quatro filhos?

Em duas visitas à propriedade, nos dias 14 de junho e no domingo, 19 de junho, tive acesso à cópia da ação judicial, verifiquei in loco a terra lavrada e cultivada e pude, em especial no segundo dia, conviver um pouco mais com a família e conversar com Rosi, a companheira de Manuel, e com as duas filhas mais velhas. Na tarde de 27 de junho, visitei uma das feiras livres em que eles vendem sua produção orgânica (além de bolos e tortas) na Praça 20 de Setembro, na cidade de São Leopoldo, e presenciei o carinho e o respeito das pessoas com a família Rinze.

A ação judicial que pleiteia a expulsão de toda a família baseia-se no episódio da prisão de Manuel, em 18 de junho de 2015, por também cultivar sua própria Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha. Manuel foi abordado em casa, pela polícia, após uma denúncia anônima de que traficaria maconha de “alta qualidade” para um “público seleto” de Novo Hamburgo. O jornal local tratou o caso de maneira sensacionalista e com grande estardalhaço – o que, aliás, é uma prática antiga da principal empresa de comunicação de Novo Hamburgo: a família proprietária e seus editores consideram essencial a cobertura policialesca para a manutenção do seu negócio.

Desde o início, Manuel admitiu o cultivo para consumo próprio, mesmo assim foi inicialmente enquadrado por tráfico. Na esteira da sanha denunciatória contra Manuel, o principal jornal da cidade não se preocupou em investigar as circunstâncias da prisão e, como lhe é de praxe, reproduziu como verdade a versão da Polícia Civil. Tal prática é conhecida, em Comunicação Social, como “jornalismo declaratório” – aquele que se serve (e se contenta) apenas com a versão da autoridade. A “fé pública”, crédito que se deve dar a documentos emanados de autoridades públicas ou serventuários da justiça, em virtude da função ou ofício exercido, é usada como desculpa para a mais pura preguiça jornalística. Mas o nonsense vai além: um obscuro blog de Novo Hamburgo, estranhamente citado na ação judicial da rescisão do comodato, publicou um delírio sem absolutamente nenhuma relação com a verdade factual: “Antes de ser preso, Manuel ateou foto na plantação”. [Como se fosse possível tal ação diante da Polícia Militar.] Outra denúncia publicada sem contraponto algum, também obscura e sem fonte revelada, dizia que “carros importados” eram vistos com frequência entrando e saindo da pequena propriedade. A narrativa foi toda construída para justificar a ação policial e manter Manuel preso o maior tempo possível.

No mesmo dia da prisão de Manuel, um coletivo de amigos, amigas e fregueses de seus produtos agrícolas nas feiras das duas cidades (Novo Hamburgo e São Leopoldo) criou no Facebook o grupo “Manuel não é perigoso” reunindo centenas de depoimentos, testemunhos e apelos às autoridades pela soltura do agricultor. Manuel ficou detido por seis dias no Presídio Estadual de Montenegro até a prisão ser relaxada pelo juiz. Ainda responde processo nesse caso mas o problema maior, para ele e sua família, começou seis meses depois, em dezembro de 2015, com a ação de rescisão do comodato baseada na repercussão midiática daquele episódio.

Mesmo depois da soltura de Manuel, o grupo criado no Facebook continuou com um debate vigoroso acerca da legalização da maconha e do cultivo para consumo próprio como acontece no Uruguai, que reduziu os índices de criminalidade a padrões impensáveis antes da liberação. Em fevereiro de 2016, por exemplo, a matéria de capa da revista britânica The Economist, afirmou que o debate pela legalização da maconha já era vitorioso. “Uma grande mordida foi tirada do mercado da máfia, milhares de jovens foram poupados de uma ficha criminal e centenas de milhares de dólares foram legitimamente ganhos e taxados. Até o momento, não houve explosão no consumo nem na criminalidade”, diz o artigo. [Veja aqui e aqui]. O delegado Orlando Zaccone, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, defende há anos a legalização em artigos, entrevistas em jornais, revistas e programas de TV. [Veja aqui um exemplo.] Em recente entrevista, no mês junho, ao programa de rádio Timeline, da rádio Gaúcha, o secretário estadual de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame (que é delegado da Polícia Federal e natural de Santa Maria-RS) também defendeu a legalização da maconha. [Ouça aqui] O jornalista gaúcho Marcos Rolim, que também é sociólogo e consultor na área de Segurança Pública, é outro especialista que defende há muitos anos a legalização. [Leia aqui.]

O maior de todos os escândalos, portanto, no caso de Manuel Rinze Kuhls e da retaliação moralista que vem sofrendo e que atinge toda sua família, não é o fato dele cultivar Cannabis sativa para consumo próprio – ao contrário do que fez crer a cobertura sensacionalista e policialesca da mídia local. O maior escândalo nesse caso é o fato de que uma lei anacrônica de proibição da maconha, e as consequências processuais que ele vem enfrentando por ter sido flagrado com sua produção própria em casa, tem sido usada para justificar o despejo de uma família inteira sem absolutamente mencionar ou se preocupar com a função social da terra. Uma terra que sustenta uma família cujas filhas mais velhas estão regularmente matriculadas na escola, obtêm excelentes notas e gozam de invejável saúde mental [como podemos verificar no vídeo acima].

O QUE O ÓDIO AO DIFERENTE E ÀS DIFERENÇAS REVELA SOBRE NÓS MESMOS

Em breve postagem de 2013 no seu perfil de Facebook, o escritor Jacob Pinheiro Goldberg, que é psicólogo, advogado e assistente social, apontou: “O ódio contra quem é diferente nasce a partir da projeção das próprias frustrações no Outro. Se estou triste, confuso, com dificuldades, a culpa é sempre do Outro (do vizinho, do diferente, do governo…), e nessa lógica, só cabe odiar o outro que não permite que eu seja feliz; excluindo a possibilidade da transformação a partir da transformação também pessoal”.

O comentário de Goldberg nos dá pistas para entendermos a sequência de problemas judiciais que Manuel e a Rosi vêm enfrentando no último ano. E foi proposital, só aqui, no final deste texto, falar das tatuagens do casal. “Depois de uma série de difíceis desentendimentos com minha família, eu propus à Rosi tatuarmos nossos rostos como um manifesto. Nós não quisemos renegar os nossos nomes e então decidimos criar a nossa própria tribo a exemplo dos índios que fazem tatuagens ancestrais. Pesquisamos sobre os significados das tatuagens indígenas e começamos, há alguns anos, e fazer em casa as nossas próprias tattoos no rosto um do outro”, conta Manuel.

Manuel e Rosi marcaram, externalizaram para sempre e nas próprias faces, as suas opções (ou inevitabilidades) internas, pessoais e intransferíveis. Já eram uma família, criaram uma “tribo” – que trabalha a terra pela permacultura, o cultivo permanente, sem venenos, respeitando os ciclos da natureza; cujas filhas mais velhas estão bem na escola e, em casa, convivem com livros e diálogos em alemão e português, integradas às coisas da terra e às saudáveis relações humanas – assim como os dois irmãos menores. Rosi, natural de São Nicolau mas residente em Novo Hamburgo desde criança, teve os últimos três filhos (Nina, Lutz e Wolfgang) em casa com acompanhamentos de doulas e é uma entusiasta do parto humanizado. A própria filha mais velha, Antje, ajudou no parto do irmão caçula. Vale lembrar que o retorno ao parto normal é uma orientação, inclusive, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Brasil é o campeão mundial de cesáreas – a imensa maioria desnecessária e que se prestam ao ajuste das agendas dos médicos obstetras. [Saiba mais aqui]

Um possível choque inicial com as opções de vida ou com a aparência, com a diferença externalizada nas tatuagens de Manuel e Rosi, revela mais sobre nós mesmos, nossos medos, padrões e preconceitos, do que sobre quem verdadeiramente são os Rinze. Basta ouvir, num dos vídeos, os comentários, as expressões e os sorrisos das meninas Antje e Nina quando perguntadas sobre a opinião delas sobre as tattoos dos pais. “Achamos bonitas. Bem legal”. Simples assim, para as crianças. Tão complexo para nós adultos. Principalmente quando não procuramos conhecer o outro lado da história.

Rosi e Manuel.png

Rosi e Manuel

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*Henri Figueiredo é jornalista, consultor de mídias digitais e social media. Foi editor-chefe das publicações do Sindicato dos Servidores do Judiciário Federal no Rio de Janeiro. Começou a carreira, em 1995, no jornal da cidade de Novo Hamburgo que é mencionado neste artigo.